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sábado, 14 de maio de 2022

Mar, belo mar selvagem

 



PALAVRAS AO MAR


 Mar, belo mar selvagem

 Das nossas praias solitárias! Tigre

 A que as brisas da terra o sono embalam,

 A que o vento do largo eriça o pêlo!

 Junto da espuma com que as praias bordas,

 Pelo marulho acalentada, à sombra

 Das palmeiras que arfando se debruçam

 Na beirada das ondas - a minha alma

 Abriu-se para a vida como se abre 

A flor da murta para o sol do estio.

 

Quando eu nasci, raiava

 O claro mês das garças forasteiras:

 Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,

 Nadando em luz na oscilação das ondas,

 Desenrolava a primavera de ouro;

 E as leves garças, como olhas soltas

 Num leve sopro de aura dispersadas,

 Vinham do azul do céu turbilhonando

 Pousar o vôo à tona das espumas...

 

 É o tempo em que adormeces

 Ao sol que abrasa: a cólera espumante, 

Que estoura e brame sacudindo os ares,

 Não os saco de mais, nem brame e estoura;

 Apenas se ouve, tímido e plangente,

 O teu murmúrio; e pelo alvor das praias,

 Langue, numa carícia de amoroso,

 As largas ondas marulhando estendes...

 

 Ah! vem daí por certo

 A voz que escuto em mim, trêmula e triste,

Este marulho que me canta na alma,

 E que a alma jorra desmaiado em versos;

 De ti, de tu unicamente, aquela

 Canção de amor sentida e murmurante

 Que eu vim cantando, sem saber se a ouvia,

 Pela manhã de sol dos meus vinte anos.

 

 O velho condenado, ao cárcere

 das rochas que te cingem!

 Em vão levantas para o céu distante

 Os borrifos das ondas desgrenhadas.

 Debalde! O céu, cheio de sol se é dia,

 Palpitante de estrelas quando é noite,

 Paira, longínquo e indiferente, acima

 Da tua solidão, dos teus clamores...

 

 Condenado e insubmisso

 Como tu mesmo, eu sou como tu mesmo

 Uma alma sobre a qual o céu resplende

 - Longínquo céu - de um esplendor distante.

 Debalde, o mar que em ondas te arrepelas,

 Meu tumultuoso coração revolto

 Levanta para o céu como borrifos,

 Toda a poeira de ouro dos meus sonhos.

 

 Sei que a ventura existe,

 Sonho-a; sonhando a vejo, luminosa.

 Como dentro da noite amortalhado

 Vês longe o claro bando das estrelas;

 Em vão tento alcançá-la, e as curtas asas

 Da alma entreabrindo, subo por instantes... 

O mar! A minha vida é como as praias,

 E o sonho morre como as ondas voltam!

 

 Mar, belo mar selvagem

 Das nossas praias solitárias! 

Tigre de que as brisas da terra o sono embalam,

 A que o vento do largo eriça o pêlo!

 Ouço-te às vezes revoltado e brusco,

 Escondido, fantástico, atirando

 Pela sombra das noites sem estrelas

 A blasfêmia colérica das ondas...

 

 Também eu ergo às vezes

 Imprecações, clamores e blasfêmias

 Contra essa mão desconhecida e vaga

 Que traçou meu destino... Crime absurdo

 O crime de nascer! Foi o meu crime.

 E eu expio-o vivendo, devorado

 Por esta angústia do meu sonho inútil.

 Maldita a vida que promete e falta,

 Que mostra o céu prendendo-nos à terra,

 E, dando as asas, não permite o vôo!

 

 Ah! cavassem-te embora 

O túmulo em que vives - entre as mesmas 

Rochas nuas que os flancos te espedaçam, 

Entre as nuas areias que te cingem... 

Mas fosses morto, morto para o sonho,

Morto para o desejo de ar e espaço,

E não pairasse, como um bem ausente,

Todo o infinito em cima de teu túmulo!

 

 Fosse tu como um lago, 

Como um lago perdido entre as montanhas: 

Por só paisagem - áridas escarpas, 

Uma nesga de céu como horizonte... 

E nada mais! Nem visses nem sentisses 

Aberto sobre ti de lado a lado 

Todo o universo deslumbrante - perto

Do teu desejo e além do teu alcance!

 

 Nem visses nem sentisses 

A tua solidão, sentindo e vendo 

A larga terra engalanada em pompas 

Que te provocam para repelir-te; 

Nem buscando a ventura que arfa em roda, 

A onda elevasses para a ver tombando, 

- Beijo que se desfaz sem ter vivido, 

Triste flor que já brota desfolhada...

 

 Mar, belo mar selvagem! 

O olhar que te olha só te vê rolando 

A esmeralda das ondas, debruada 

Da leve fímbria de irisada espuma... 

Eu adivinho mais: eu sinto... ou sonho 

Um coração chagado de desejos 

Latejando, batendo, restrugindo

Pelos fundos abismos do teu peito.

 

 Ah, se o olhar descobrisse 

Quanto esse lençol de águas e de espumas 

Cobre, oculta, amortalha!... A alma dos homens 

Apiedada entendera os teus rugidos, 

Os teus gritos de cólera insubmissa,

Os bramidos de angústia e de revolta

De tanto brilho condenado à sombra,

De tanta vida condenada à morte!

 

 Ninguém entenda, embora, 

Esse vago clamor, marulho ou versos, 

Que sai da tua solidão nas praias, 

Que sai da minha solidão na vida... 

Que importa? Vibre no ar, acode os ecos

E embale-nos a nós que o murmuramos...

Versos, marulho! Amargos confidentes

Do mesmo sonho que sonhamos ambos!


do livro Poemas e Canções, de Vicente de Carvalho, o Poeta do Mar